Há alguns pares de décadas atrás, no
tempo em que as redes sociais virtuais eram sonho de ficção científica, Nelson
Rodrigues chegara a constrangedora conclusão de que os idiotas são a maioria.
Entretanto, naquele tempo, como bem nos adverte o historiador Leandro Karnal,
eles tinham uma severa dificuldade de aparecer, de manifestar o conteúdo dos
seus ódios, preconceitos, reducionismos e tudo mais. A internet e o advento das
redes deram a esse segmento majoritário um canal livre e desimpedido para que,
assustadoramente, nos cheguem clara e desafiadoramente às vistas. Para piorar
essa situação, a grande cáfila dos idiotas já conta com programa político e
seus respectivos representantes, já eleitos ou por eleger. A imbecilidade
majoritária é um sintoma difícil de colocar em um só campo do saber. Podemos
atribuir ao egoísmo de um narciso infantil mal resolvido, onde se deseja de
modo arbitrário e violento fazer prevalecer uma visão de mundo distorcida e,
com ela, todo o conteúdo simplório, distorcido e com uma carga de autoritarismo
vista somente nas grandes tragédias da humanidade.
Lembro-me da filósofa Hannah
Arendt quando acompanhou o julgamento do figurão nazista Adolf Eichmann, a
convite de uma revista e que resultou em sua polêmica obra “Eichmann em
Jerusalém”. Em sua análise, o genocida
não era tão ideologicamente vinculado assim ao antissemitismo entre outras
premissas simbólicas do Partido Nazista. Era um burocrata eficiente e de
capacidade abominável de cumprir as piores e mais perversas ordens como uma
tarefa a ser cumprida. Foi enforcado. E por que ele assim procedia? A
explicação não é tão simples mas pode ser entendida pelo que a filósofa chama
de “banalização do mal”.
Quando o mal é banalizado ele vira a solução. Ou
melhor, ele pode ser visto como solução para outros males, desde que
naturalizado na dimensão maquiavélica de que os “fins justificam os meios”. E
ele é extremamente eficiente posto que nos cega para qualquer outra dimensão.
Por isso, chamamos direitos humanos – uma conquista evolutiva da moralidade
humana – em instrumentos de defesa de bandidos. É nesse caminho que trilhamos
quando defendemos o que nos protege do estado de natureza hobbesiano, o todos
contra todos, ao tirarmos do Estado-Leviatã o monopólio da força e da
capacidade de regular a vida em comum e passar essa prerrogativa para que as
pessoas portem livremente armamentos e possam atirar em quem bem entender. Afinal,
todos sabemos que os “bandidos” não serão os únicos mortos.
Em um país como o nosso, violento
da cabeça aos pés, ou seja, tem uma elite narcísica e violenta, uma classe
média conservadora e violenta, e uma camada pobre imersa no cotidiano da
violência como meio quase natural de sua vida, o que esperarmos quando uma
vereadora, ativista dos direitos humanos é executada? Desvencilhamos o fato de
quem era ela? Foi uma vítima asséptica do acaso da violência urbana? Estupidez
sem tamanho. A bala que matou a Marielle foi direcionada a tudo que ela era
sim. Pois o que produz “Marielles” são negras pobres, de periferia. As que
convivem com o arbítrio e os abusos diários tanto de quem deveria protegê-las
quanto dos que são produzidos pela profunda desigualdade para ser o que nós
chamados de tralhas, bandidos e coisas assim. Em pleno século XXI ainda
acreditamos que ser marginal é apenas uma opção, coisa de índole, como se o ser
humano de Rousseau renascesse naturalmente bom mas sem a parte de que a
sociedade o corrompe. Ele se corrompe sozinho e por que quer. E quem tem pena
que leve para casa. Não é assim o discurso comum?
Sinto muito pela vereadora. A
bala foi para tudo o que ela representa sim. No país do mal banalizado, podemos
simplesmente tratar a questão como fatalidade. Podemos tentar fazer com que a
moral da Marielle seja manchada com alguma mentira construída (e a história tem
tantas a disposição...) para que o coletivo majoritário dos idiotas possam
vangloriar-se com o famoso “ninguém morre de graça” ou “morreu pelas mãos dos
bandidos que defendeu”.Ao que parece não teremos mais eleições. Teremos um
confronto civilizacional. Só um dos dois lados passará. E se o lado do mal
banalizado prevalecer, quem sabe Eichmann não seja mais enforcado.
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