Todo mundo já teve a sensação de que as coisas no mundo de hoje andam meio desreguladas. Para alguns isso pode ser interpretado com mero saudosismo. Já outro, mais conformados ainda, já consideram como os inevitáveis sinais de que tudo mudou e que caba a cada um de nós uma resignada adaptação. Nada contra quem gosta desse universo, não precisa nem xingar o autor ou mesmo continuar a leitura do texto. Afinal, meu paladar está mais próximo do meu bolso do que das papilas gustativas... Já é por si só uma boa razão para desqualificar a presente crônica...
Seja como for tem coisas que, apesar de estar quase chegando à meia-idade, eu ainda não me acostumei. Uma delas sem dúvida é esse tal de mundo gourmet.
Venho pensando sobre isso há bastante tempo. Creio que tudo começou quando percebi, com bom carioca, que uma das nossas maiores tradições, praticamente nosso patrimônio imaterial da sociabilidade, o cafezinho de alguns centavos sumiu do mapa. Ainda me lembro que era possível achá-lo em qualquer biboca e podíamos molhar a palavra, seja na xícara de louça branca ou no copo de vidro. Hoje é melhor não ter nem tantos amigos pois convidar alguém para um café tornou-se um evento. O cafezinho virou uma obra artesanal, selecionada, decorada, servido a um preço, convenhamos, nem um pouco atraente. Se antes podíamos beber um café, agora nós o degustamos.
Ou seja, ficou um saco! E de uma hora para outra todo mundo virou especialista em café. "A temperatura da água vai macular o pó", dizem uns... "Prefiro grãos de puro arábica orgânico", dizem outros... E assim quase expulsamos o cafezinho de nossas casas, queimamos os maravilhosos coadores de pano e só abrimos exceções às máquinas (sempre elas...) que aceitam aqueles charmosos refis de potinho. Aí sim é café. Talvez o mesmo valha para o chá, não pesquisei...
Até no mundo animal o espectro gourmet chegou. Não consegui entender até hoje por que a ração do cachorro tinha o título de "salmão com ervas" ou "seleção de carnes ao molho", sendo que na composição só encontramos o emaranhado de carne, legumes, farelos... imaginei como serviria tal iguaria, na tigela? Heresia!
Mas vi que a coisa ficou realmente feia no planeta no dia em que fui almoçar no botequim de costume, no Rio de Janeiro. Sabe aquela comidinha honesta e a um preço promocional para a classe trabalhadora? Esse mesmo! A apresentação, apesar de simples, sempre foi bacana, evitando aquela geografia difusa dos pratos-feitos, lançando mão de uma pequena caçarola para a porção de feijão e a bandeira de alumínio para o restante da opção do dia. A rotatividade é sempre a dica de que a promoção é feita de produto fresco. Bom, o caso se deu quando ao meu lado um cidadão, notoriamente tão trabalhador como qualquer um outro ali sentado, pediu explicações ao garçom e posteriormente ao proprietário do estabelecimento se a carne que estava prestes a comer havia sido ou não congelada.
Como a resposta era de que a carne havia sido descongelada para o consumo do dia, o nobre comensal se negou a comer e pediu para trocar por uma feita imediatamente para ele, um corte recém feito, de um boi que, de preferência, acabasse de parir o bife. Chegou outra travessa. O rapaz fez uma incisão, olhou, cheirou, olhou de novo, e chegou ao veredito, agora olhando para mim, que estava sendo enganado. De quebra, como nem eu nem ninguém tinha o menor interesse, sentenciou de modo orgulhoso que fazia curso de chefe.
Não sabia se eu ria da cena ou do fato de ter desejado o bife, caso não tivesse sido dissecado com tanto desprezo. É o mundo gourmet, dos programas de televisão que mostram cozinheiros neuróticos gritando e exigindo de outros candidatos a neuróticos uma perfeição que, na mídia de massa, dá a aparência de ser a regra do mundo contemporâneo.
Por isso, talvez não encontraremos mais cafezinho barato, ficaremos chateado com a falta de padrão, ornamentação e frescor dos pratos do botequim, olharemos com vergonha para o nosso freezer, com desprezo para nossa geladeira e aceitemos passivamente que tudo que leva o nome de gourmet merece custar o olho da cara. E para melhorar, todo mundo virou especialista em gastronomia. Ficou um saco!
Para terminar, pensei no apocalipse quando procurei as explicações que faziam do doce mais sem vergonha e gostoso do planeta, o brigadeiro, ter virado gourmet também. Queria o velho de volta, aquele que roubávamos nas festas de criança... Mas ele se foi. Pouco a pouco estão nos tirando tudo, feijoada, macarronada, mortadela, sorvete de creme e por aí vai...
Tomara que saudade encha barriga...
1 comentários:
Vivemos a síndrome dos especialistas, aqueles que formulam "postulados" que tiram o brilho das coisas simples e boas dá vida, e em seu lugar deixam "monstros" dialéticos de uma complexidade que mais atrapalha que ajuda, que saudosismo das coisas simples e boas dá vida,quando um cafezinho era simplesmente em "pretinho fresco passado no saco e que se comprava por um vintém"
Postar um comentário